“Amre be… (há muito tempo) A Wayra era o que é hoje, ventania. Nada mudou Wayra não sabe o que é cronos, nem kairós. Nada a controla. Nada a domina. Sua fúria e Sua singeleza andam lado a lado em um fluxo perfeito…” (KAYAPÓ, A.N. L.)
WAYRA NÃO ANDA SÓ.
Wayrakunas somos nós, um movimento de indígenas mulheres, que teve sua origem desde antes da primeira caravela que atravessou os oceanos e atracou neste território apelidado de Brasil. Nasceu da resistência de insurgentes guerreiras originárias, insubmissas ao sistema colonial violentamente posto, e que tem se refletido na contemporaneidade. Wayrakunas é isso, a continuidade da luta de nossas antepassadas, é a insurreição da ordem que por séculos tenta nos invisibilizar e nos silenciar. Wayrakunas atravessam os tempos mostrando para quem quiser ou não ver, que o cronos não é o nosso deus e que, portanto, o tempo não tem o poder de reduzir a vitalidade da nossa luta. Consideramos que durante séculos nossas antepassadas foram como o vento, que não se vê, mas a presença é forte e imprescindível para a sobrevivência. O vento traz boas novas, renova o ar e poliniza sementes, e o resultado disso somos nós, que estamos aqui dando continuidade à luta de nossas antepassadas. Nós, Wayrakunas, acreditamos nos valores ancestrais do bem viver e nele nos apoiamos para o enfrentamento da colonialidade. Entendemos que o projeto de Modernidade europeu não é capaz de cumprir, para todos os povos, suas promessas de liberdade, igualdade, bem-estar e justiça, devido ao seu comprometido pernicioso com a colonialidade, operando as expropriações que têm nos violado nos últimos séculos. O humanismo iluminista, que traz o homem para o centro de todas as coisas no sentido mais literal da palavra “centro e homem” é o mesmo que tenta nos afastar da nossa humanidade nos descaracterizando enquanto natureza, achando que nos diminuirá ao nos comparar a seres animalescas. Nossa motivação é viver firmadas na coletividade, na pluralidade, na ancestralidade e na diversidade, que são os verdadeiros valores que pautam as nossas vidas e que sem os quais não existiríamos. Essas lições aprendemos também com as animais e seres não-humanos das florestas. A igualdade chegou aqui com pretensões muito firmes em nos amontoar em um aglomerado de brasileiras aportuguesadas e graças às nossas mais diversas resistências temos nos mantido firmes, lutando pela inviolabilidade dos nossos corpos que são a extensão dos nossos territórios ancestrais, e pela segurança em nossos Territórios indígenas pois são deles as fontes do nosso refúgio dessa sociedade desencantada. Wayrakunas ou em uma possível tradução “filhas da ventania”, na língua Aymara, é a força que acredita ser possível a criação de um conhecimento que caminhe de acordo com as nossas epistemologias ancestrais. Por esse motivo as Wayrakunas têm lutado bravamente para ganhar visibilidade através da entrada e permanência das indígenas-mulheres dentro das academias, estando na resistência contra toda forma de epistemicídios historicamente declarados e postos sobre nós, mas também sobre os corpos de nossos guerreiros, que são imprescindíveis para nós. A continuidade da luta de nossas ancestrais, se dá através de nós, que somos pensadoras de nosso tempo, indígenas mulheres da atualidade que se empoderam de conceitos e lutas para atualizar a luta ancestral, reconfigurando-a no espaço/tempo atual como sujeitos contemporâneos que somos, porém, com raízes e memórias antigas. Temos como aporte teórico-filosófico as contribuições do feminismo, especialmente do feminismo decolonial, do ecofeminismo e do feminismo comunitário. Sendo assim nosso movimento tem como base as estratégias de atuação ligadas à ancestralidade de cada integrante, somada aos preceitos de tais aportes. Além de trazermos a dimensão ancestral, valorizamos também a espiritualidade que nos conecta com a fonte criadora que é nossa Mãe Terra, o senso de coletivo ancestral nos traz a relação de parentesco, quando nos reconhecemos como parte do Todo e quando nos reconhecemos umas nas outras. Apesar de buscarmos o aporte teórico-filosófico nos feminismos, afirmamos com convicção que é impossível a existência de um feminismo indígena, não por dissidência, mas por uma consciência histórica de luta. Nossas antepassadas lutaram contra a aplicação desse estado moderno, sem nem ao menos serem consideradas humanas. Então resumir a nossa resistência ancestral em um feminismo, é ignorar que durante séculos o corpo da mulher branca europeia e as heranças deixadas por ela, refletidas no corpo da atual mulher politicamente branca e racista, foi extremamente pernicioso para a integridade dos nossos corpos, e que, portanto, considerar uma luta só, seria um ultraje para as nossas memórias de resistência. Mesmo assim, o gênero nos alcançou. Como uma cruz foi posto sobre nossos ombros. Um pecado pesado por não ser nosso. O pecado do gênero inventado a partir de um modelo patriarcal invisibilizador, e de invisibilidades nós entendemos bem, por esse motivo, acreditamos ser possível e coerente que indígenas mulheres se posicionem politicamente como feministas, no entanto, sempre deixando muito evidente nossas formas particulares e coletivas de lidar com tudo que nos envolva. É importante ressaltar que o movimento das Wayrakuna e o feminismo são dois movimentos que se complementam e de maneira alguma concorrem entre si. Nossa intenção não foi e não é criar mais um divisionismo, e sim de uma concepção prática, teórico-analítica e filosófica sobretudo que está envolta a nossa história, do mesmo modo delimitar nossas formas e visões de lidar com o que chega até nós através do gênero e por conta dele, pois existem diferenças lunares entre o que move as reivindicações de não-indígenas e as nossas reivindicações, que estão ligadas às nossas cosmologias e não prioritariamente ligadas às questões de gênero. Quando falamos isso, não estamos em hipótese alguma afirmando que questões de gênero sejam menos importantes, embora atravessem tudo que nos envolva, não são pautas centrais, pois ainda estamos lutando para aplicação de direitos e garantias fundamentais como a segurança da nossa casa que é o nosso território e deveria ser “asilo inviolável” como preza a letra do art. 5º, XI, da constituição federal de 1988. Ao contrário disso, vivenciamos invasões reiteradas onde garimpeiros e madeireiros não se intimidam diante do judiciário, uma vez que são apoiados pelo chefe do poder executivo e pela maioria anti-indígena no congresso nacional. Desta forma, a luta da natureza não está separada da luta das mulheres e dos povos, como o ecofeminismo e o feminismo comunitário buscam mostrar. O primeiro surgiu na década de 1970, cunhado por Françoise D’Eubonne (1978), que trouxe reflexões para os movimentos de mulheres e para os movimentos ecologistas, trazendo à consciência de que não adianta lutar por igualdade num ambiente degradado que está matando a todos nós devido aos altos níveis de toxicidade, assim como não adianta lutar pela proteção ambiental e continuar reproduzindo relações desiguais de poder e acesso aos benefícios. Já o feminismo comunitário, segundo Paredes (2016), nasceu na Bolívia, no ano 2003, com os movimentos de insurreição das mulheres indígenas na luta contra o neoliberalismo e a privatização da água e a guerra do gás. Em pleno terceiro milênio, reivindicamos paz nos partos. Não queremos a insegurança de sermos mutiladas por violências obstétricas, onde corremos o risco de sermos esterilizadas por mãos racistas que tentam nos impedir de parir. Mais de 520 anos desde a invasão e estamos aqui, reivindicando acesso a água potável. Precisamos beber água limpa, que esse Estado teima em contaminar quando fomenta garimpagem em terras indígenas. De acordo com os estudos históricos e econômicos de Silvia Federici (2004), o capitalismo é germinado junto com o período compreendido pela Inquisição que durou cerca de quatro séculos durante a Idade Média, a partir do século XIII. Esta época foi o marco, para a história mundial, no que diz respeito aos povos originários das terras “conquistadas” e também para as mulheres subjugadas pelos tribunais, compostos pela aliança entre Igreja e Estado. Estes agiam para atender interesses econômicos das sociedades dominantes, marcando o momento em que a resistência das mulheres e dos povos se tornou característica intrínseca para a continuidade de existência, diante do rolo compressor ditado pelo capital econômico, em busca da expansão de seus domínios territoriais. Desde então, mulheres e povos das “terras conquistadas” lutam para existir e resistem para se manterem vivos sendo quem são, de acordo com suas características e conhecimentos específicos. Os movimentos de resistência sempre existiram, no entanto, são feitos muitos esforços pela cultura hegemônica para que estes desapareçam no abismo do esquecimento e para que as relações de parentesco fiquem cada vez mais frágeis, ao ponto de não nos reconhecermos mais e nem reconhecermos nossas relações interpessoais e com a terra. Desta forma, com a noção de território sendo esvaída, a terra e todos a ela associados se tornam simplesmente objetos que podem ser utilizados para atender pura e simplesmente os interesses da sociedade marcada por valores patriarcais, capitalistas e racistas. Neste sentido, podemos retomar Lugones (2014), quando afirma que dentro dessa hierarquia de poderes a interseccionalidade entre classe, raça, gênero e sexualidade se faz necessária para se entender a preocupante indiferença que os homens brancos representados pela colonialidade do poder mostram diante das violências que sistematicamente se infringem sobre as mulheres, especialmente as de cor (mulheres não-brancas), mulheres vítimas desta colonialidade do poder e, inseparavelmente, da colonialidade de gênero. Navegando pela História da Humanidade, temos visto os movimentos de mulheres e povos em todo o mundo tornando-se vigorosos e cada vez mais abrangentes impulsionando o olhar da sociedade para questões gritantes enraizadas no tecido social atual. Questões estruturais como – antropocentrismo, colonialismo, imperialismo, androcentrismo, racismo, sexismo e classicismo – vêm à tona para questionar a subjugação de povos e mulheres e a exploração da natureza, usados para alimentar a fome insaciável do capitalismo – modelo de sociedade incentivado e almejado pelos “dominantes”, e também pelo inconsciente coletivo da sociedade em geral. Acontece que para nós, indígenas mulheres e povos tradicionais, a colonização não acabou, ela se reinventa, se atualiza e se reproduz na colonialidade do poder, do ser e do saber (QUIJANO, 2005), transformando-se em uma máquina monopolizadora, subalternizando, principalmente, mulheres indígenas e negras, que são aquelas que estão mais expostas a todo tipo de violência atrelada às desigualdades sociais, consequências desse projeto econômico forjado que elucida diversos fatores de herança colonial. Nosso principal objetivo é fortalecer esta Rede de Indígenas Mulheres para a produção de conhecimentos, trazendo para as pautas contemporâneas a luta ancestral e assim podermos deixar um legado para as futuras gerações. Nós, do movimento Wayrakuna, acreditamos na força de nossa ancestralidade, que nos une e é em nome dela que as filhas da ventania têm se debruçado, ressignificando as nossas histórias individuais e coletivas, e consequentemente a História do Brasil sob a ótica das Indígenas Mulheres.