Todo ser vivente deve ter o direito ao seu território, pois ele é o espaço vivido, onde são estabelecidas as relações entre sociedade-natureza e o amalgamento entre biodiversidade e etnodiversidade. Por este motivo, a luta pelo território deve anteceder todas as lutas.
Terra, teto e trabalho são preceitos imprescindíveis nos ideais da Economia conclamada pelo Papa Francisco. O líder religioso que ultrapassa os espaços da Igreja Católica, vem impulsionando esse movimento que fez com que jovens do mundo inteiro, respondessem ao seu convite de dar alma à economia, contrapondo à lógica de mercado do sistema vigente que empobrece, descarta pessoas e explora a terra.
Para além disso, grupos que foram e são brutalmente vítimas da colonização e dos resquícios dela, tem visto reiteradamente, seus projetos respeitáveis de lidar com a terra, sistematicamente boicotados pelo colonialismo que é a consequência deixada pela colonização que sempre viu os povos tradicionais como atraso para nação, impondo das mais diversas formas, a sua colonialidade até os dias atuais.
Ao olharmos para a dita “sociedade civilizada”, percebemos vários desequilíbrios que aumentam as desigualdades sociais estruturais, principalmente por uma minoria que é a detentora dos meios de produção, a qual alimenta e pulveriza a falsa idéia de que todos podem se beneficiar dos recursos naturais, mesmo sabendo que são findos, sem se importarem com a devastação ambiental, que suas pseudo- necessidades causam. O resultado dessa ambição desenfreada é a contaminação de solos e água, extinção em massa da fauna e da flora, extermínio de culturas e expulsão dos povos tradicionais de seus territórios, não só na América, como na África, Ásia, Europa e Oceania.
De acordo com estudos históricos e econômicos de Silvia Federici (2004) o capitalismo é germinado junto com o período compreendido pela Inquisição que durou cerca de quatro séculos durante a Idade Média a partir do século XIII. Esta época foi o marco, para a história mundial, no que diz respeito aos povos originários das terras “conquistadas” e também para as mulheres subjugadas pelos tribunais, compostos pela parceria entre Igreja e Estado, atendendo a interesses econômicos das sociedades dominantes, marcou o momento em que a resistência das mulheres e dos povos se tornou característica intrínseca para a continuidade de existência, diante do rolo compressor ditado pelo capital econômico, em busca de expandir seus domínios territoriais.
Não podemos perder de vista, que a invasão deste território, colonizado com o nome de Brasil, estará eternamente atrelada ao derramamento de sangue de guerreiras e guerreiros que lutaram para garantir a vida. Um Estado Nacional genocida, ecocida, epistemicida foi construído sob cemitérios onde repousam nossos antepassados. As constantes tentativas de extinção não apenas de nossos povos originários, mas dos povos de matriz africana marcam as lutas por direitos e dignidade até os dias atuais.
Nessa perspectiva, nosso objetivo enquanto Wayrakunas – rede ancestral-filosófica que se vincula à luta das indígenas mulheres no Brasil – é enfatizar a importância do território originário, como espaço de construção e manutenção de nossas epistemologias, produção e reprodução da vida humana e não humana, de nossas ancestralidades, línguas, saberes e gestões territoriais. Para nós, povos originários, os territórios são jardins sagrados herdados de nossos antepassados, de modo que a forma com que gerimos esse território precisa obrigatoriamente caminhar com o respeito às vidas nele presentes.
Ao longo da história da sociedade ocidental, os seres humanos abriram mão da interação com a terra e sua sacralidade para voluntariar-se junto ao exército que declarou guerra à Terra, por todas as vias possíveis: pelo ar, pelas águas, pelo solo, pelo subsolo, pelas florestas. Uma guerra que tem se alimentado do uso, abuso e abandono de tudo que julgam não ter mais serventia. Essa é a prática histórica dos Estados Nacionais ditos civilizados, que em busca de um poder inventado, egocêntrico, humanista e machista, viram as costas para a geradora e mantenedora não apenas da vida humana, mas de todas as formas de vida.
Com o avanço da sociedade ocidental e seus valores de dominação e exploração, a Terra foi perdendo a conotação sagrada, dando lugar à visão utilitarista da mesma e, com isso, tudo e todos, que à ela estavam relacionados, também foram perdendo este valor. Sendo assim, “mulheres, grupos e povos da terra”, associados à reprodução da vida foram se tornando objetos de exploração à serviço dos interesses da civilização, parafraseando Enrique Dussel – do desenvolvimentismo moderno eurocentrado.
Ao perderem suas relações sagradas de parentesco com a Terra, passam a enxergá-la como um produto à serviço do ser humano, contribuindo para que o projeto de colonização continue em curso, comprometendo-se então, com uma idéia de “progresso” que nos levou para a beira de um caos em todas as áreas da sociedade envolvente.
Outra questão relevante é o desligamento das relações de parentesco com os povos originários, que iniciou-se durante o processo de miscigenação, inicialmente forçada como política de estado, ao ponto de muitos não se reconhecerem mais, e pior que isso, negarem suas origens de pertencimento originário, agindo como voluntários de um sistema criado para destruir, ignorando qualquer forma mínima de relação interpessoal com a Terra, a reduzindo em mera propriedade privada.
Um dos grandes desafios na contemporaneidade para os povos originários, no que concerne à gestão dos territórios, é lidar com um mercado imediatista e utilitarista, que vê a terra apenas como um fator de produção e não como vida. Tudo isso, é resultado do pensamento iluminista que separou o ser humano da natureza, com a sua racionalidade que pressupõe o domínio e a transformação da terra em nada além do que bem de consumo.
A Mãe Terra deve ser vista e respeitada como sujeito de ação, como uma pessoa, que nos dá vida e sustento quando se aprende com ela a conviver, assim como nós os povos indígenas. Movimentos ecológicos ganham força, a liberdade é transformada pelo cuidado da vida, mas, infelizmente, como afirma Ailton Krenak (2019), em seu livro: Ideias para adiar o fim do mundo – “o que está na base da história desse país, continua incapaz de acolher seus habitantes originais, sempre recorrendo a práticas desumanas para promover mudanças em nossas formas de vida”.
Navegando pela História da Humanidade, temos visto os movimentos de mulheres e povos em todo o mundo tornando-se vigorosos e cada vez mais abrangentes impulsionando o olhar da sociedade para questões gritantes enraizadas no tecido social atual. Questões estruturais como – antropocentrismo, colonialismo, imperialismo, androcentrismo, racismo, sexismo e classicismo – vêm à tona para questionar a subjugação de povos e mulheres e a exploração da natureza, usados para alimentar a fome insaciável do capitalismo – modelo de sociedade incentivado e almejado pelos “dominantes”, e também pelo inconsciente coletivo da sociedade em geral.
Acontece que para nós, indígenas mulheres e povos tradicionais, a colonização não acabou, ela se reinventa, se atualiza e se reproduz na colonialidade do poder, do ser e do saber (QUIJANO, 2005), transformando-se em uma máquina monopolizadora, subalternizando, principalmente, mulheres indígenas e negras, que são aquelas que estão mais expostas à todo tipo de violência atrelada às desigualdades sociais, consequências desse projeto econômico forjado que elucida diversos fatores de herança colonial. A maior parte da população, que é empobrecida, e não branca, é herdeira de pessoas que foram escravizadas, exploradas e expropriadas de suas terras, de seus trabalhos e de seus saberes.
Para Lugones (2014), dentro desta hierarquia de poderes a interseccionalidade entre classe, raça, gênero e sexualidade se faz necessária para se entender a preocupante indiferença que os homens brancos representados pela colonialidade do poder mostram diante das violências que sistematicamente se infringem sobre os povos e sobre as mulheres, especialmente mulheres não-brancas.
Para as escritoras indígenas, o tema decolonização aparece como possibilidade para anticolonização. Anticolonizar é romper com tudo aquilo que serviu ao projeto colonizador, é ultrapassar não somente terminologias que foram impostas pelo ocidente, mas também superar a amarga herança colonial. Anticolonizar nossos corpos, como uma ação que vai para além da materialidade física, mas de tudo que o compõe, seja rios, montanhas e todos os animais que coexistem conosco, é nossa principal agência de resistência.
Para os não-indígenas, deve ser muito mais do que uma simples reparação histórica. Juntar-se às causas de luta pelo território, possibilitar espaços de escutas às comunidades indígenas, mergulhar nas memórias das ancestralidades e tomar consciência para uma sincera libertação de mentalidades corrompidas pelo poder colonial, assim como o respeito às nossas epistemologias.
Atualmente, nós, indígenas mulheres, Wayrakunas, contamos com diversos movimentos organizados, de mulheres não-indígenas ligadas à terra, como o Movimento Ecofeminista, Movimento de Quilombolas, Mulheres Camponesas e o Feminismo Comunitário, que munidas de forças, conhecimentos ancestrais e científicos, dominam ferramentas contemporâneas de luta, buscando a cura das doenças sociais, emocionais, psicológicas e ecológicas em diferentes espaços de atuação, seja no campo, na cidade ou na política, com o objetivo de reencantar o mundo.
Como indígenas mulheres, afirmamos que essa relação com a Mãe Terra nos transforma e equilibra nossas mais diversas relações, por isso, é extremamente necessário, que haja uma mudança radical desse sistema que a explora, saqueia e destrói, como uma máquina monopolizadora que funciona a partir dos interesses do capital, uma indústria extrativista, com uma ideologia propagada a partir do imaginário moderno ocidental que a terra apenas existe para servir a “humanidade”.
Para muitas almas pessimistas, a ação de fazer frente a esse sistema opressor, seria uma grande pretensão, no entanto, se desencantar foi possível, reencantar também será, e é nisso que seguimos acreditando. Por esses motivos, nos colocamos em parceria com Papa Francisco, que tem se proposto a romper com paradigmas que engessaram nossos povos por séculos, e tem encarado a missão de promover e incentivar um novo comportamento, fazendo frente contrária a todos os desmandos ocasionados por esse mercado liberal decadente.
Contudo, paralelamente, respondendo ao chamado do Papa Francisco de realmar a economia do mundo, uma economia encarnada que dá vida e não destrói, dar espírito em tudo que foi despersonalizado pelo poder colonial, mesmo que não seja uma resposta direta, mas que comunga com os ideais, surge em 2020, puxado por Aline Kayapó, o Wayra, um movimento ancestral filosófico de indígenas mulheres que visa refletir sobre os mecanismos de opressão da colonização, presentes em nossas histórias individuais, nas histórias de nossas antepassadas e nas histórias dos povos originários desta terra, por meio da análise dos efeitos dos processos de colonialidade, ou seja, o sistema de organização do poder que ainda segue em curso através dos sistemas político, econômico e científico/ epistêmico. Somos a continuidade da luta de nossas ancestrais! Sendo assim, a construção de novas relações entre sociedade e natureza se faz urgente e necessária nos tempos atuais. Por este motivo, nos inspiramos na luta ancestral em defesa da garantia de direitos dos territórios (terras e corpos), para reconstruir um futuro onde novamente seremos natureza e, a natureza, por sua vez, tenha garantia de seus direitos de existência independente dos “usufrutos” dos seres humanos. E que os Seres Árvores, Seres Rios, Seres Montanhas, Seres Animais possam novamente nos confiar mensagens de esperança!